sábado, 27 de setembro de 2008

A Crise nos Mercados Financeiros

Tem razão, independentemente do estilo arrogantezinho do costume...

"O debate sobre a crise dos mercados financeiros tem atingido, em Portugal, níveis de histeria que só a ignorância sobre o que aconteceu permite explicar.
A tese mais comum é a seguinte: os loucos ultraliberais dos ingleses e dos americanos permitiram aos banqueiros gananciosos que inventassem sofisticados instrumentos financeiros, totalmente fora do controlo (ou da supervisão) do Estado e dos governos, e isso provocou um colapso que todos os economistas mais avisados tinham previsto.
Esta hipótese seria correcta se a supervisão e a regulação bancária fossem cegas ao que se passou, ao longo das últimas décadas, em Wall Street ou na City. Também seria correcta se as duas empresas que estão no olho do furacão, em concreto as famosas Fannie Mae e Freddie Mac, as que alimentaram o mercado hipotecário de alto risco contra todo o senso comum, fossem instituições financeiras cujas operações e lucros resultassem da especulação.
Acontece porém que estas premissas são falsas. Rotundamente falsas. E vale a pena começar por explicar o que são, ou eram, as famosas Fannie Mae e Freddie Mac. E nada melhor que, em vez de usar os acrónimos por que eram conhecidas, escrever o seu nome por extenso. Fannie Mae quer dizer Federal National Mortgage Association; Freddie Mac significa Federal Home LoanMortgage Corporation. Reparem: os nomes completos de ambas as empresas partilham duas palavras: “federal” e “mortgage”.
A presença da designação “federal” dá o primeiro indício do tipo de empresas coloque lidamos, pois “federal” nos Estados unidos é uma espécie de sinónimo de governo central. E, no caso, é exactamente isso que “federal” significa. A Fannie Mae foi criada em 1938 pelo mais “socialista” (desculpe-se a ironia) dos presidentes dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, no quadro do New Deal, o programa de apoio às classes mais desfavorecidas que criou a base de muitos dos programas sociais ainda hoje existentes. A Fannie Mae foi criada em1970, também pelo Governo de Washington e também com um objectivo social.
A função social das duas empresas é revelada pela outra palavra que partilham, “mortgage”, no fundo um sinónimo de crédito hipotecário. Em português corrente, crédito concedido com base na garantia de uma hipoteca, habitualmente a casa que esse crédito financiava. A função da Fannie Mae e da Freddie Mac era assegurarem que os bancos aceitavam conceder empréstimos a famílias de menores rendimentos para que estas pudessem comprar casa. Eram uma espécie de seguradoras públicas ou semipúblicas dos bancos comerciais que procuravam evitar que estas, por falta de garantias suficientes, concedessem crédito às famílias da classe média baixa. Ou mesmo às com menores rendimentos.
Os produtos “tóxicos” de que tanto se tem falado são sobretudo os que garantiam a solvência destas agências para-estatais. O que significa que se podemos falar da irresponsabilidade dos seus gestores, a seguir convém acrescentar que eles em Portugal seriam mais depressa gestores da Caixa Geral de Depósitos do que de um banco privado. O que significa que só por falta de informação ou distorção dos factos se pode atribuir à “ganância” do sector privado “especulativo”a culpa da actual crise. O segundo aspecto que tem sido muito distorcido radica na ideia de que a origem dos problemas está na desregulamentação e na falta de supervisão. Podemos considerar que, nos EUA, esta era e é insuficiente, mas então temos de reconhecer pelo menos duas outras verdades: primeiro, que em muitos domínios há mais regulamentação e supervisão em Wall Street do que na maior parte dos mercados europeus, Portugal incluído; depois, que o principal problema da supervisão foi a sua incompetência, não a sua inexistência.
De forma muito sintética, e apenas para ilustrar a importância de reconhecer estas duas últimas verdades, basta recordar que as regras de transparência exigidas em Wall Street são tão rigorosas que muitas empresas portuguesas já lá estiveram e saíram. É bom recordar, por exemplo, que enquanto na Bolsa de Lisboa uma instituição como o BCP pode sempre apresentar lucros milionários, quando esteve cotada em Wall Street teve de obedecer a regras contabilísticas mais apertadas em que... dava prejuízo. Curioso, não é? E estranho, se pensarmos que lá é que reina a selva e por cá domina o “avisado” e “consciencioso” braço do Estado...
Mas, mais importante do que referir as regras concretas, é bom comparar o estilo da reserva Federal Americana, o famoso Fed, incluindo no tempo do “mago” Greenspan, a forma como utilizou a manipulação das taxas de juro e a injecção de dólares nos mercados de modo a alimentar o crescimento da economia, com o estilo do Banco Central Europeu, cujos dirigentes têm resistido a todas as pressões dos governos – incluindo as do Governo português – para actuarem deforma semelhante com as taxas de juro.
O que é que aconteceu nos Estados Unidos? Ao facilitar dinheiro barato sempre que a economia arrefecia, o Fed permitiu que o consumo privado se mantivesse elevado, funcionando como motor do crescimento. Mas, ao mesmo tempo, criou estímulos para aqueles que não podiam comprassem casas que, num mercado onde o preço é determinado pela procura, subiram a preços disparatados. Porém, até porque existiam leis federais que o proibiam (algumas aprovadas pelas administrações democratas de Cárter e de Clinton), a Fannie Mae e Freddie Mac continuavam a garantir os empréstimos para que os menos endinheirados continuassem a comprar casa.
A conjugação do activismo de uma agência pública – o Fed – com o “altruísmo” imposto por lei de duas agências para-estatais está na base da “bolha imobiliária” que, quando rebentou, criou a actual crise.Não deixa pois de ser curioso verificar que o primeiro-ministro em funções na altura em que estalou a crise no BCP e que tem sido um adepto fervoroso da baixa de taxa de juros, de forma a embaratecer o preço do dinheiro, tenha ontem no Parlamento feito um discurso quase anticapitalista."

José Manuel Fernandes, editorial do Público, 25 Set. 2008

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